She keeps me warm..
15:32
Seria mais um serão passado na estação de metro, no
qual tudo seria imprevisível. Teria sido um dia cansativo, ansiava o aconchego
da minha cama.
O metro atrasara-se e o tempo parecia estagnar
durante a espera. Em todas as sextas-feiras seria a mesma espera, o mesmo
cansaço e os mesmo pormenores: de fones nos ouvidos, enquanto uma melodia de
Mozart soa, reparo em cada passo impaciente do cavalheiro de bigode aguçado:
cinco e meio em frente, seis atrás, intercalando, por vezes, com dois para a
esquerda e outros dois para a direita, enquanto fricciona as mãos, uma contra a
outra, numa tentativa de se esquentar. A senhora de cabelos louros e longos,
com os seus trinta bem preservados que chega sempre numa correria, a conferir o
relógio enquanto remexe a sua bolsa, que mais coisas não poderia conter.
Chegou, por fim.
Sentei-me no lugar habitual e, para meu enorme pasmo,
a porta estava já a fechar-se, quando uma jovem entrou de rompante, sentando-se,
do outro lado do carril, na minha diagonal, com uma amiga igualmente jovem.
Uma jovem que aparentava uma energia abundante. Fiz a
viagem de olhos postos no vidro que refletia a jovem, tão bela.
Por vezes, o meu olhar escapava e era nesses momentos
que os nossos olhares se cruzavam e, de imediato, ela girava a sua cabeça com um
modesto sorriso envergonhado.
Levava um grande portefolio no colo. Tinha os lábios
manchados de encarnado, uma beleza tão natural e um olhar com tanta amargura
aparente.
Levava um lenço na cabeça que se lhe prendia no
pescoço com um laço perfeito, um lenço azul escuro que combinavam na perfeição
com os seus olhos, tão claros, agitados e húmidos quanto o mar.
A amiga saiu duas paragens antes da minha, pelo que,
calculei que a jovem tivesse como destino, o mesmo que eu. Tiro e queda, a rapariga
vivia na mesma aldeia que eu.
Na semana seguinte, mesmo ritmo, mesma rotina e mesmo
atraso.
E semanas foram passando, e eu já sabia que na minha
diagonal se sentaria a bela jovem que me faria pairar como um miúdo novamente.
Já seria hábito discutir comigo próprio enquanto
ganhava coragem de abordar a doce menina, à saída. Queria ouvir a sua meiga
voz, reproduzida por tão delicados e carnudos lábios encarnados. Imaginava. Vê-la,
todas as sextas, com um lenço diferente, deveria ser a sua imagem de marca, e
talvez, a marca do seu humor: talvez os escolhesse consoante o seu humor... Ou
o estado do tempo que teria estado horrível nesses tempos... Chuvoso...
Bem, não sei ao certo, mas imaginava os seus cabelos
por debaixo dos seus lenços de seda, cabelos de um tom castanho claro, longos e
majestosos.
E, semanas depois, lá ia a jovem, mas dessa vez,
sozinha... Seria a minha oportunidade, mas fui dominado pelo medo. Mas... Medo
de quê, afinal? De levar uma “tampa”? Não seria a primeira... Medo de quê,
afinal de contas?
Bom, eu não sei, mas que o sentia, sentia.
À saida seria a minha chance.
A porta estava a abrir-se e ela, em frente a mim,
cerca de 15 cm mais baixa. Conseguia sentir o seu aroma. Aprazível.
Estava a chover torrencialmente e ela não teria
guarda-chuva; levava o portefolio de sempre entre os braços e sem proteção impermeável.
Já se teria distanciado um pouco, ia oferecer-lhe boleia, pelo que, para mesmo
pasmo, ela tira o lenço da cabeça e, quando deveriam cair os seus cabelos
esvoaçantes, reparo que não tem cabelo. Embrulhou o portefolio e começou a
correr prontamente, ao ponto de, imediatamente, ter saído do meu campo de visão.
O meu mundo desabou.
Aí, tudo teria feito sentido. A agonia no seu olhar,
os lenços...
Mal consegui dormir nessa mesma noite, a relembrar a
pureza daquela jovem, a amargura do seu olhar tão imaculado.
Na semana seguinte estaria disposto a colocar de
parte a vergonha, o medo e enfrentar a menina que estaria a fazer-me sonhar.
Sexta-feira chegou. Lenta, mas chegou.
Na estação a aguardar o metro, este chega e entro, dirijo-me
ao mesmo lugar de sempre. Quando as portas estão já a fechar-se, reparo que
apenas a amiga se encontra lá. Olho novamente para a porta, enquanto esta ainda
se está a fechar...
Fechou-se e o metro iniciou a viajem. Sem a menina.
Atormentado, fixei, por várias vezes, o olhar nela.
Decidi afirmar a minha presença e dirigir-me a ela.
“Desculpa, posso (...)?” – perguntei, embaraçado,
apontando para o lugar vago onde deveria estar a menina dos lenços de seda.
“Claro” – tirou a sua bolsa do banco,
disponibilizando-me o lugar.
“A tua amiga... A que costuma vir contigo. Hoje não
veio, porquê?”
“A Carolina?”
“Sim, sim.” – na verdade eu não sabia o seu nome, mas
não podia demonstrar-me um desconhecido, certo?!
“Conhece-la?” – perguntou.
“Hm, sim” – balbuciei, - “Ela vive na minha aldeia.”
E foi aí que os olhos de Mafalda se começaram a
encher de lágrimas.
“A Carolina não conseguiu sobreviver, apesar de toda
a luta.”
Se o meu mundo havia caído ao chão quando a vi por
debaixo da tempestade, com a cabeça despida, neste momento, a minha alma bateu
no fundo com uma força inesgotável, ecoando por todo o meu corpo...
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